A pandemia de covid-19 e o aumento dos casos de feminicídio

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou sobre o surto da doença causada pelo novo coronavírus, a covid-19, que representava uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional – o mais alto nível de alerta da Organização. Em março de 2020, a covid-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia, em decorrência do seu rápido alastramento geográfico entre a população mundial.

A partir desses marcos, a comunidade internacional assistiu atônita, diária e incessantemente, à rápida disseminação da covid-19 e às fracassadas tentativas dos Estados Nacionais em freá-la. Chegou-se a pensar que o corona era um vírus democrático, porque não escolhia suas vítimas em razão de sexo, raça, classe, gênero, idade, deficiência, atingindo a todos e todas da mesma maneira – inesperada, forte, por muitas vezes, letal. A comunidade internacional imaginou-se diante de um perigo igual, comum a todos e todas – ledo engano.

Logo essa cortina se entreabriu e começou-se a perceber que a pandemia covid-19 era mais cruel do ponto de vista da violação de direitos humanos para determinadas populações do que para outras, pois atingia mais violentamente as pessoas vulnerabilizadas socialmente, como é o caso das mulheres e meninas, em sua maioria negras, que são majoritariamente atingidas pela violência institucional e de gênero, obrigadas a conviver com a perene negação de seus direitos.

A forma como a violência de gênero atinge as mulheres no mundo, mais fortemente na América Latina, recai mais pesadamente sobre negras, indígenas e periféricas, sendo considerada como verdadeira epidemia. Com o advento da pandemia de covid-19, os números que referenciam esta violência sofreram um significativo acréscimo, trazendo para o foco do debate quais seriam as suas causas, por que morrem ainda mais mulheres vítimas de feminicídio em um momento tão delicado, no qual a união e a proteção coletiva, familiar, deveria ser o norte?

Um vírus ainda desconhecido da comunidade científica, que só nas Américas até meados de setembro de 2020 matou mais de 530 mil e infectou mais de 15 milhões de pessoas – segundo dados da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS) e da OMS – não só contribuiu para o aumento da violência praticada contra as mulheres, inclusive em sua expressão máxima que é o feminicídio, como também para o seu desemprego, adoecimento, sobrecarga de trabalho doméstico, trazendo ainda mais desigualdades e violências outras.

O cumprimento das novas regras de isolamento social, que para algumas famílias significou descanso, possibilidade de estudo e aperfeiçoamento profissional, convivência pacífica familiar, renovação da casa, crescimento, pausa, compartilhamento de afetos, para outras foi sinônimo de conflitos acirrados, dificuldades financeiras aumentadas, fome, desentendimentos, aprisionamento, excesso de trabalho, adoecimento, rupturas e mortes violentas.

Confinadas em casa, muitas desempregadas, mulheres e meninas passaram a ser alvo ainda mais fácil e constante de feminicídios, crime de ódio, que tem como causas estruturais o machismo, o patriarcado, a cultura eurocêntrica, heteronormativa, capitalista, racista, LGBTIQI+fóbica e destruidora do meio ambiente.

No Brasil, este aumento se deu em proporções variadas, a depender da região, podendo chegar aos níveis alarmantes de São Paulo, que alcançou o patamar de 50% de aumento das mortes de mulheres em razão do gênero, em relação ao mesmo período de março a abril de 2019, sendo que mais de 66% destes crimes de ódio ocorreram dentro da própria residência da mulher, segundo dados do Ministério Público de São Paulo.

Em países como China, Itália, França e Espanha, os primeiros a experimentarem as consequências mais nefastas da covid-19, o número de feminicídios também aumentou consideravelmente, assim como identificou-se expressiva subnotificação de novos casos de violências doméstica e familiar.

A Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), por meio de denúncias feitas pelo Disque 100 e Disque 180, sinaliza que as principais violações de direitos humanos em tempo de pandemia têm sido exposição de risco à saúde, seguida por maus tratos, insubsistência material, e agressão/ vias de fato. Aponta, ainda, que as principais vítimas das violações de direitos humanos relacionadas à pandemia do novo coronavírus têm sido pessoas socialmente vulneráveis, pessoas em restrição de liberdade, idosos, mulheres e crianças.

O confinamento e isolamento social, aliados à total omissão governamental em investir nos contrapesos necessários, nas políticas públicas destinadas a evitar, por exemplo, o desemprego em massa, assim como o colapso do SUS, contribuíram para um maior tensionamento das relações pessoais, o que tende a desencadear mais violência, denotando que o lar, o ambiente privado, não é um lugar seguro para mulheres e meninas, principalmente se forem negras e indígenas.

Outro fator importante, a diminuição da oferta dos serviços da rede de atenção à mulher, principalmente os efetuados pelas equipes interdisciplinares (geralmente formadas por psicólogos e assistentes sociais), nos moldes preconizados pela Lei Maria da Penha e referendados pelo Protocolo Mínimo de Padronização do Acolhimento e Atendimento da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Condege/2014), significa, na ponta, a vulnerabilização de mulheres e tem estreita correlação com o expressivo aumento de casos de feminicídio, sendo determinante, também, para a subnotificação de registros de novos casos de violência doméstica e familiar, observada junto aos órgãos oficiais de denúncia.

Fato é que a pandemia de covid-19 trouxe um desafio maior para as instituições encarregadas pela concepção e execução da política pública de prevenção e combate à violência de gênero, denotando que faz-se urgente e necessária uma maior atenção, valorização e novos investimentos nas áreas da saúde, educação, segurança, moradia, acesso à Justiça, acesso a emprego em igualdade de condições, para que se consiga efetivamente diminuir as discriminações e violências vivenciadas pelas mulheres e meninas, especialmente as negras e indígenas, mesmo em dias pandêmicos.

Pede-se vênia para agregar a palavra firme da aguerrida companheira de luta, Doutora Lucia Xavier, Criola: “A sociedade brasileira não pode escolher sacrificar as mulheres negras nesse grave quadro de violência e violação dos direitos face ao impacto da pandemia do novo coronavírus no País. Queremos viver em um País democrático, com direitos e dignidade. A solução das crises e da pandemia de covid-19 no Brasil passa pela garantia de vida digna para as mulheres negras”. E a exigência certeira de Joênia Wapixana, deputada federal indígena que, diante da necessidade de criar-se um fundo de apoio às comunidades indígenas em tempos de pandemia, bradou: “É uma emergência, os indígenas estão morrendo e desprotegidos”.

Finaliza-se, desejando que nada pior do que a vivência da pandemia de covid-19 seja necessário para que uma nova ordem mundial mais justa nasça, exatamente depois da chuva, como uma flor de Mandacaru, a nos dizer que há esperanças.

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